A Batalha de Kobanê

No discurso ocidental sobre a recente ascensão do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS, na sigla anglo-saxã), a imagem mais difundida é a de um Exército implacável de fundamentalistas muçulmanos armados até os dentes, que massacram inocentes, decapitam jornalistas e avançam para cada vez mais perto do Ocidente (faltam apenas uns 1600 quilômetros até o Bósforo)¹. Os únicos capazes de detê-los? Não se sabe até agora, mas o candidato mais provável sem dúvida parece ser o Presidente Obama e seu sempre disposto exército de bombardeiros e drones – uma guerra curiosa, deslocalizada, fruto de uma opinião pública americana receosa de enviar soldados mais uma vez para o Oriente Médio sem uma data de retorno estimada. Mas e se eu dissesse que há uma outra força militar enfrentando o ISIS nesse momento, cujos feitos são pouco noticiados pela imprensa ocidental? 
Um Exército onde mulheres combatem ao lado dos homens?
(E não estou falando de Israel) 
As YPG (Yekîneyên Parastina Gel, ou Unidades de Proteção Popular, em Curdo) conquistaram a cidade de Kobanê em Julho de 2012, no meio do caldeirão da Guerra Civil Síria. O YPG é o braço armado do PKK, um partido que, desde os anos 80 até o ano passado,estava travando uma guerra contra o Estado Turco para obter autonomia para o povo curdo. Os Curdos são, atualmente, o maior povo sem Estado do mundo – pelo menos 30 milhões de pessoas espalhadas pela Turquia, Iraque e Síria. 
Seu líder, Abdullah Öcalan, fundou o PKK em 1978, tendo como inspiração original o Marxismo-Leninismo Europeu e o tradicional sistema de Estados-Nação – buscava estabelecer uma pátria curda no seio de um Estado, criado a partir das zonas etnicamente Curdas. Mas, com o fim da Guerra Fria e a prisão de Öcalan em 1999, o PKK começou a se transformar. A ideologia marxista foi sendo abandonada gradualmente, substituída por um esquerdismo comunitarista, horizontal e feminista. O Partido deixou inclusive de buscar o estabelecimento de um Estado-Nação Curdo – a ideia agora é a de buscar a criação de comunidades autônomas democráticas, em uma forma de governo horizontal². 
Um fato que tem chamado cada vez mais atenção é a presença maciça de mulheres entre os militantes armados do YPG, em um desdobramento direto de sua crença na igualdade de gêneros. As combatentes, como boa parte da população curda e da militância do PKK, são em grande maioria muçulmanas sunitas, e muitas usam o véu. O que pode estar em curso no cerco de Kobanê é uma transformação do papel da mulher no Islã, opondo uma organização onde ela ocupa um papel proeminente a um exército-em-vias-de-ser-um-Estado que reforça suas tendências mais patriarcais e excludentes. A lição a ser tirada aqui é que não há nada de essencialmente misógino no Islã – como toda religião baseada em um texto, até a leitura mais literalista será seletiva, e sociedades majoritariamente muçulmanas não são impedidas por sua religião de adotar formas de organização social tão diversas entre si quanto o cristianismo moldou regiões tão diferentes quanto os Estados Unidos, a Suécia e o Brasil. A nossa própria visão do Estado Islâmico (e pelo amor de Deus, não estou aqui para romantizar o Estado Islâmico) é informada por uma visão bastante seletiva do que ele representa no contexto geral do Islã. As racionalizações da imprensa, academia, policymakers e senso-comum do Ocidente para que seja preferível transformar a região entre o Tigre e o Êufrates em uma enorme cratera a deixar ela cair nas mãos desse grupo é de que ele quer converter à força toda a população a sua variante específica do Islã, utilizando-se de violência e execuções para fazer valer a sua vontade, incluindo as bastante divulgadas execuções por decapitação. Esses críticos precisariam então explicar a acolhida que a Arábia Saudita recebeu e continua recebendo como um dos maiores aliados americanos na região, tendo contudo levado à cabo 79 execuções por decapitação ou apedrejamento em 2013³, com o crime de Apostasia (o abandono do Islã) ainda sendo punível por execução pela Sharia(4). De fato, os esqueletos no armário são tantos para todos os envolvidos que acabou se percebendo que, se os argumentos usados contra o Isis fossem aplicados a todo o Oriente Médio, a região inteira teria que ser varrida do mapa(5).
Ao que tudo indica, o YPG/PKK inspiraram sua constituição atual no EZLN (6)- grupo armado de esquerda que, em 1994, se insurgiu contra o Estado Mexicano nas montanhas de Chiapas, e desde então têm construído lá comunidades autônomas e democráticas, dando uma representação política aos povos Maias que estes não conseguiam pelas vias tradicionais da democracia liberal. É o que Ernesto Laclau e Chantal Mouffe chamam de “Democracia Radical” – a democracia, modificada para incluir a ideia de diferença (7).
Chiapas, Kobanê – qual será a próxima etapa, o próximo núcleo da luta global dos povos oprimidos? Essas comunidades apresentam um alternativo radical ao sistema internacional como ele é entendido hoje – baseado na divisão do mundo em Estados, e, quando muito, Estados-Nação. Até quando essa alternativa vai durar? Chiapas vêm resistindo há 20 anos – completados em Janeiro deste ano – mas Kobanê está sob ataque.
cerco
Em Setembro, as forças do Estado Islâmico começaram um cerco à Kobanê, levando, até o dia 18 de Outubro, à pelo menos 700 baixas de ambos os lados. Mesmo aqueles que, em teoria, são aliados no conflito contra o Estado Islâmico – a Turquia, com quem o PKK assinou um cessar-fogo em 2013 – tem se mostrado receosos diante do grupo. A Turquia foi acusada de lançar ataques aéreos contra as forças do YPG perto de Kobanê, na sua fronteira com a Síria, e fechou a fronteira aos militantes do PKK(8). Imprensada contra a fronteira Turca e o governo nacionalista do Presidente Erdogan, de um lado, e o avanço dos soldados do aspirante à Califado, de outro, a luta de Kobanê continua. O que sairá desse conflito: morte e destruição ou um possibilidade de um modelo político que torne obsoleto o Estado como conhecemos, um modelo, esperamos, mais justo e igualitário? Seja qual o resultado, a alternativa de um Islã libertário em um conflito marcado pela intolerância não termina aqui. 
 
1) Àqueles chocados com essa simplificação do atual conflito no Iraque, aguentem-se até a parte em que eu critico a mim mesmo.
3) Detalhes das execuções na Arábia Saudita podem ser encontrados neste http://www.amnestyusa.org/sites/default/files/act500012014en.pdf
7) O conceito de ‘Democracia Radical’ é explicado em mais detalhes no livro ‘Hegemony and Socialist Strategy‘ de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau.

2 comentários sobre “A Batalha de Kobanê

  1. Oi Franco,

    Excelente texto!! Aprendi muito com ele e fiquei fascinado com a história do YPG. Muito obrigado.

    Uma pergunta: você nos pede em sua nota 1 para esperarmos seu momento de auto-crítica. Eu não o encontrei. Minha leitura foi muito rápida ou ele foi muito sutil? Quero saber que movimento é esse.

    Um comentário: talvez a alternativa “morte e destruição ou um possibilidade de um modelo político que torne obsoleto o Estado como conhecemos” restrinja demais as opções aberta pela questão que você levanta. Primeiro porque alternativas raramente emergem sem “morte e destruição”. Segundo, e principalmente, porque entre a “derrota” desses movimentos e a obsolescência do Estado como o conhecemos, pode haver universos a serem explorados. A existência de um grupo como o YPG às margens de Estados pode ser um exemplo disso. Talvez possamos ver mais se evitarmos essa alternativa?

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    • Paulinho,
      Obrigado pelo comentário! Sobre os pontos:
      A nota 1 é mais um pedido de desculpas pelo meu estilo no primeiro parágrafo, que parece criar uma dicotomia entre os ‘árabes barbudos e malvados do ISIS’ e ‘o ocidente defensor da liberdade’. A autocrítica seria a parte em que desconstruo essa visão mostrando que os crimes cometidos pelo ISIS não são muito piores que aqueles cometidos pelos aliados do ocidente (e, aliás, pelo próprio ocidente!)
      Sobre o segundo ponto, é realmente um excelente questionamento: entre uma saída e outra realmente existem MUITOS caminhos, e talvez tenha sido realmente fechado de minha parte reconhecer um simples “ou” como a opção. A parte sobre a violência incluída no processo de superação do Estado foi particularmente perspicaz. Talvez tenha sido uma concessão estilística mais ou menos inconsciente dado o caráter mais engajado e menos acadêmico do texto.
      Obrigado por enriquecer a discussão!
      Amor y besos,
      Franco

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